terça-feira, 9 de dezembro de 2014

LIVRO RELEMBRA PERSEGUIÇÃO À COMUNIDADE LGBT DURANTE A DITADURA

Se compreender os meandros políticos e jurídicos da ditadura exige um enorme esforço analítico, como comprova a profusão de reflexões nos últimos anos sobre esse tema, entender a relação entre a ditadura e a homossexualidade é questão ainda mais complexa.
Do cruzamento entre a ditadura e a homossexualidade, diversas questões emergem de plano. Quais foram os efeitos da ditadura no cotidiano de mulheres que amavam outras mulheres, de homens que desejavam outros corpos masculinos ou mulheres e homens que se recusaram a reproduzir as noções e o comportamento hegemônicos de gênero? A situação de gays, lésbicas, travestis e transexuais piorou ou melhorou sob a ditadura durante os anos 60, 70 e 80? Houve uma consequência real na vida do “homossexual comum” quando os generais substituíram os civis no governo, quando a Lei de Segurança Nacional fortaleceu o poder arbitrário do Estado, quando a censura passou a exercer maior influência sobre a produção cultural e quando o novo regime acabou com as liberdades democráticas impondo uma moral baseada em valores conservadores? E o movimento social LGBT, então em incipiente organização, como foi afetado por essa conjuntura específica?
A homossexualidade constituía, segundo a própria visão oficial do governo, uma ameaça subversiva ao regime autoritário. O anticomunismo se articulava com valores morais conservadores na produção de políticas repressivas de Estado contra pessoas LGBT, pelos riscos que estas representavam à “família”, à “moral” e aos “bons costumes”. Assim, normas jurídicas e forças policiais foram mobilizadas, especialmente depois do golpe de 1964, para restringir direitos desse segmento LGBT e hostilizar essas pessoas de lugares públicos. Mas essa repressão teve de conviver com seu contraponto, que foi a liberdade e a resistência que se materializaram em espaços de sociabilidades homossexuais, ainda que guetificados.
Essa ambiguidade deve ser ressaltada. A tentativa de normalização da sociedade em uma régua bastante conservadora de valores nesse momento conviveu com as resistências que surgiam nas universidades justamente no momento da chamada “revolução sexual”, com novos papeis sociais conquistados pelas mulheres, especialmente das classes médias, e com a ampliação dos espaços de sociabilização homossexual. Essas transformações culturais eram compreendidas pela direita como atentatórias à moral e aos bons costumes, contra a religião católica e nocivas à família tradicional brasileira.
Infelizmente, parte significativa das esquerdas compartilhavam essas mesmas noções moralistas e homofóbicas, o que acabava por marginalizar os militantes com desejos homoeróticos. Reconhecer isso, no entanto, não significa colocar em um mesmo patamar os tratamentos que a ditadura e as esquerdas dispensaram a esse tema. Nesse sentido, é imperativo ressaltar a diferença existente entre o atraso da esquerda nessa pauta e o poder do Estado para reprimir os homossexuais, usando a censura e a violência direta de modo a interditar um debate sério sobre esta questão.
O ano de 1968 marcou a passagem para outra fase da história do regime militar. A edição do Ato Institucional n. 5 (AI-5), decretado em 13 de dezembro de 1968, acabou com esse ensaio de emancipação que mal tinha sido desencadeado. A repressão, a censura, o medo, as violências, a cassação de direitos e o poder policial, que aumentou neste momento, acabaram com qualquer sonho de uma organização LGBT.
As torturas, as prisões arbitrárias, os desaparecimentos forçados, as execuções sumárias, a censura e o estado de exceção contra as esquerdas, os estudantes e os movimentos político-sociais afetaram toda a sociedade. Para os gays e as lésbicas, a repressão abafou as possibilidades de se imaginar novos modos de vida, formas de expressar o desejo e os afetos, bem como movimentos sociais identitários. As arbitrariedades dos órgãos de Estado criaram uma paranoia e um pânico entre as pessoas, o que dificultou qualquer oportunidade de organização política para contestar as atitudes homofóbicas, conservadoras e moralistas, tanto da ditadura quanto da sociedade como um todo.
Talvez um dos exemplos mais evidentes da repressão institucionalizada neste período foram os expurgos de homossexuais dentro do Itamaraty entre 1969 e 1970, uma campanha que só deu resultando parciais, pois havia muitos diplomatas que protegeram os alvos desta campanha. Esse episódio da ditadura ainda é pouco pesquisado, mas os sete diplomatas que foram cassados explicitamente por “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa” refletem bem as influências moralizadoras do regime militar contra a suposta subversão de homossexuais.
A partir de 1974, com a abertura lenta e gradual e a reorganização das oposições à ditadura, criam-se as condições para uma organização política de gays e lésbicas. Apesar dessas iniciativas de organização do movimento, a repressão policial nesse período não cessou. Nessa época ocorreram episódios fundamentais para compreender a ação repressiva da ditadura sobre a vida de gays e travestis na cidade de São Paulo no período de 1976 a 1982. Intensificaram-se as operações de policiamento ostensivo e de repressão judicial contra a população LGBT. Destacam-se, em particular, os estudos criminológicos do delegado Guido Fonseca sobre as travestis e as rondas com prisões arbitrárias que foram acentuadas sob o comando do delegado José Wilson Richetti no governo de Paulo Maluf
Como reação às violências na cidade contra esses setores marginalizados, os novos movimentos sociais que surgiram, especialmente os movimentos feminista e negro, serviram como exemplos para o incipiente movimento LGBT, que se organizou nos anos 70 e 80 justamente como parte da onda mais ampla de redemocratização do País após duas décadas de ditadura.
Sob diferentes óticas, portanto, o livro Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade busca uma melhor compreensão sobre esse período. Quem trabalha para buscar a memória e a verdade sobre o regime militar tem de ampliar o campo de visão para entender todas as maneiras em que a ditadura influenciava e afetava a sociedade brasileira. As lésbicas, os gays e as travestis também foram e seguem sendo vítimas da repressão, do discurso moralizador e do regime arbitrário. Gays e lésbicas também foram protagonistas da enorme mobilização que logrou enfraquecer e derrubar a ditadura para criar uma nova situação mais democrática que, apesar de suas limitações, permitisse conquistar direitos e novos espaços dentro da sociedade brasileira e por um País mais justo.
Visibilizar as violências praticadas pelo Estado contra esses segmentos sociais e, ao mesmo tempo, a resistência que estes empreenderam é uma tarefa que diz respeito não apenas ao passado, mas também ao presente.
A homotransfobia ainda é, infelizmente, uma questão atual no Brasil. O crescimento da influência de religiões conservadores sobre o sistema político tem imposto uma série de bloqueios e até de retrocessos para as lutas por igualdade e reconhecimento. A defesa dos direitos das pessoas LGBT e a defesa da democracia se confundem. Assim, inserir essa agenda nas políticas de justiça e de reparação em curso no País permite compreender que a luta por aprofundar a democracia é, também, uma luta que demanda o pleno respeito à diversidade sexual.
*Esta é uma versão adaptada da introdução ao livro Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade, que foi lançado no dia 26 de novembro, às 19h, na Livraria da Travessa do Leblon no Rio de Janeiro e no dia 27 de novembro, às 19h, na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo.
TítuloDitadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdadeOrganizadores: James Green e Renan Quinalha
EditoraEdUFSCar 
Número de páginas: 332
Preço: 49 reaisISBN: 978-85-7600-386-1
Fonte:Carta Capital

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