Ao passar a limpo muitas das violações de direitos humanos ocorridas nos anos de chumbo no Brasil, entre 1964 e 1985, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue à presidente Dilma Rousseff, dá destaque inédito à perseguição e aos abusos ocorridos contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, que durante a ditadura foram alvo tanto do regime militar quanto dos grupos de esquerda e que sofriam mais em torturas, assim como negros e mulheres.
Entre as principais violações destacadas pelos pesquisadores estão as rondas policiais sistemáticas para ameaçar e prender travestis, gays e lésbicas, cuja prática de "higienização" levou ao menos 1,5 mil pessoas à prisão somente na cidade de São Paulo; torturas, espancamentos e extorsões dirigidas sobretudo a travestis; censura à grande imprensa quando abordava a temática das "homossexualidades" (o termo LGBT não era usado na época) e aos veículos gays, como o emblemático jornal "Lampião"; afastamento de cargos públicos por conta da sexualidade, como ocorrido em 1969 no Itamaraty; prontuários de servidores públicos com registros sobre a sexualidade; além de perseguições aos embrionários movimentos de gays e lésbicas na década de 1970.
Se para o regime ser homossexual era algo considerado algo subversivo e um agravante da periculosidade de uma pessoa frente à Segurança Nacional, além de ameaçar a moral e os bons costumes – pensamento que tinha o apoio de grande parte da sociedade –, para os grupos de esquerda os movimentos LGBTs consistiam em uma "luta menor", ou um "vício pequeno burguês".
Para um dos responsáveis pelas pesquisas que resultaram no relatório, Renan Quinalha, da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo, embora homofobia e discriminação não tenham sido "inventadas" pela ditadura e não se possa dizer que houve uma política de "extermínio", é nítido que se tratou de uma "política de Estado".
"Dada a natureza e o grau dessa perseguição, seja por atuação ou omissão do Estado, e levando em conta o preconceito e a discriminação com uma dimensão institucionalizada, é possível afirmar que a homofobia foi, sim, uma política de Estado durante a ditadura", avalia.
Ao lado do brasilianista James N. Green, Quinalha organizou o livro Ditadura e Homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade (Editora EdUFSCAR, 2014). Os dois também assinam o relatório e as recomendações incorporadas ao relatório final da CNV.
Um dos colaboradores do livro, o pesquisador Rafael Freitas, da PUC-SP, abordou em sua dissertação de mestrado o papel das rondas policiais executadas pelo delegado José Wilson Richetti no centro de São Paulo no final dos anos 1970.
"A primeira dessas rondas data de 1968, quando de uma visita da Rainha Elizabeth 2ª a São Paulo. A polícia quis limpar o centro da cidade. Em declarações a jornais da época, Richetti não fazia questão de esconder este objetivo, ao afirmar que era preciso 'limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados'", conta.
Freitas relembra que algumas travestis, após repetidas prisões e espancamentos, criaram a tática de cortar os pulsos para saírem mais rápido da prisão. "Após três dias de humilhações, em que muitas ficavam sem comida e eram forçadas a limpar a cadeia, algumas chegavam ao ponto de tentar o suicídio para serem soltas mais rapidamente".
Há relatos de operações de Richetti em bares de gays e lésbicas em que os camburões da polícia simplesmente levavam a todos, de forma indiscriminada. "Quem for viado pode entrar", gritavam os policiais, lembra o pesquisador.
TORTURA E ESQUERDA
Pedro Dallari, jurista e coordenador da Comissão Nacional da Verdade, diz que os trabalhos da comissão ao longo dos últimos dois anos e sete meses identificaram que a sexualidade era um diferencial no grau de brutalidade das sessões de tortura.
"Homossexuais que eram presos ou perseguidos politicamente acabavam sofrendo mais. Na visão do regime isto era um agravante na condição deles, o que também acontecia com os negros e as mulheres", diz.
Durante uma audiência pública em abril deste ano, em São Paulo, outro membro da CNV, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, também se posicionou sobre o tema.
"Durante a ditadura militar, a homofobia, traço incrustado desde sempre no funcionamento dos aparelhos estatais e nas atitudes da sociedade brasileira, acirrou-se. Havia repressão sistemática de homossexuais por parte do aparelho repressivo. Militantes gays eram humilhados nos interrogatórios e tortura. Espetáculos de travestis e transformistas eram censurados e proibidos. Publicações eram censuradas. A sociabilidade LGTB obrigada a se esconder e se reprimir", disse, relembrando que o país precisa avançar na aprovação da lei que criminaliza a homofobia.
João Silvério Trevisan, jornalista, um dos principais personagens da história LGBT do país e um dos criadores do jornal Lampião, que entre 1979 e 1981 foi ousado em retratar a temática gay em meio à ditadura, diz que é preciso relembrar como a população LGBT também sofreu nas mãos da esquerda.
"Muitas vezes se esquece de deixar claro este outro lado do que os homossexuais sofreram. Muitas vezes chegou até a violência física, quando mulheres lésbicas foram atacadas pelo MR8 em São Paulo. Movimentos indigenistas, de negros, do meio ambiente, e dos LGBTs eram considerados 'lutas menores', com se a chegada do proletariado ao poder fosse resolver tudo. No início da movimentação no ABC, Lula chegou a dizer 'não existem bichas na classe operária'. Houve muita indignação e posteriormente os movimentos também marcharam nas grandes greves", relembra.
CONTRIBUIÇÃO ESQUECIDA
Para o brasilianista americano James N. Green, um dos fundadores do grupo Somos – a primeira organização politizada de gays e lésbicas do país, fundada em 1978 em São Paulo –, se por um lado os homossexuais precisam de um maior reconhecimento oficial como vítimas de perseguição e violações de direitos humanos, por outro, seu papel na resistência à ditadura também é muitas vezes esquecido.
Ele relembra que, apesar das dificuldades enfrentadas com os movimentos de esquerda e sindicalistas, um grupo de 50 pessoas do Somos aderiu à marcha de 1º de maio de 1980, durante as greves do ABC, com duas faixas: "Contra a intervenção nos sindicatos do ABC" e "Contra a discriminação do/a trabalhador/a homossexual".
Para ele, a inclusão da temática LGBT no relatório final da CNV é uma vitória nestes dois sentidos. "É uma conquista histórica, muito importante. O papel dos homossexuais na redemocratização do Brasil foi sempre muito esquecido. Não fosse a dura repressão, certamente o país teria movimentos LGBTs muito mais fortes já antes do final da década de 1970, como nos Estados Unidos e na Argentina, mas havia muito medo", conta.
Marisa Fernandes, uma das pioneiras ativistas lésbicas no país, também relembra a participação das lésbicas na redemocratização, e como lutaram contra a censura. Ela conta que, em maio de 1985, a apresentara Hebe Camargo, ao trazer para seu programa na TV Bandeirantes a ativista Rosely Roth, do GALF (Grupo Ação Lésbico-Feminista), recebeu ameaças do Serviço de Censura Federal de São Paulo.
"Durante a ditadura militar, o modo de vida LGBT sofreu repressão com as tentativas de ocultar suas manifestações, porque a violência do Estado autorizava e apoiava a perseguição contra homossexuais", diz.
EXEMPLO MUNDIAL E HOMOFOBIA
Para especialistas, pesquisadores que estudam o tema, ativistas LGBTs que viveram à época e membros da CNV, há consenso sobre o avanço demonstrado e o exemplo que o Brasil dá ao mundo ao incluir os LGBTs em seu relatório final com destaque.
Eduardo González, diretor do programa de Verdade e Memória do Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ, na sigla em inglês), diz que em geral as comissões da verdade ao redor do mundo tendem a focar apenas nos crimes de maior visibilidade, como execuções, torturas, desaparecimentos e prisões políticas, e que o Brasil pode dar um exemplo a outros países com o destaque inédito à população LGBT.
"É muito útil, muito importante que o radar da comissão brasileira tenha se expandido dessa maneira. Tivemos menções superficiais a LGBTs em outros relatórios, e no Peru descobrimos já muito tarde que havia grupos de esquerda que reivindicavam assassinatos de homossexuais, prostitutas e travestis, mas tivemos tempo de incluir apenas uma breve menção", diz o sociólogo peruano cuja organização já assistiu mais de 30 países em suas comissões da verdade.
Renan Quinalha, da Comissão Estadual de São Paulo, também elogia o trabalho da CNV. Para ele, a medida abre portas para a obtenção de políticas reparatórias e indenizações sofridas por esses grupos, além de aumentar consideravelmente a pressão pela criminalização da homofobia no país. "Por piores que sejam o direito penal e nosso sistema de justiça, a criminalização da homotransfobia é fundamental para mudarmos a cultura da impunidade e da naturalização das violências contra esses setores."
"A cada 28 horas, uma pessoal LGBT é assassinada no país. Esse índice é alarmante. Conhecer o passado e dar o devido reconhecimento a esses grupos marginalizados historicamente nos ajudará a romper com o ciclo de violência e de impunidade existente ainda hoje. O trabalho que fizemos não foi só de historiografia, mas de ação política no presente", afirma.
"Enquanto não for feito o acerto de contas com a ditadura em todas as suas dimensões de violências, não teremos uma democracia efetiva com respeito a direitos humanos e às diversidades."
Com informações G1