Pesquisa do Instituto de Psicologia da
USP demonstra que o despreparo e, principalmente, o preconceito ainda
impedem que mulheres trans sejam plenamente atendidas nos serviços
públicos de saúde. De acordo com o estudo, a postura inadequada de
alguns profissionais de saúde em relação as mulheres trans durante
diferentes fases do atendimento médico, desde a entrada nos serviços até
a própria continuidade do tratamento, pode significar um entrave ao
amplo acesso à saúde integral e gratuita, garantida em lei para todos os
brasileiros desde a Constituição de 1988.
A psicóloga Grazielle Tagliamento procurou mapear como mulheres trans
eram recebidas e atendidas no SUS. Para isso, entrevistou sete dessas
mulheres, de faixas etárias e níveis de escolaridades distintos, todas
moradoras do município de Curitiba, no Paraná. Os dados estão na tese de
doutorado (IN)Visibilidades caleidoscópicas: a perspectiva das mulheres
trans sobre o seu acesso à saúde integral, orientada pela professora
doutora Vera Silva Faciolla Paiva.
O conceito de “mulheres trans” é abrangente e não se restringe somente a
mulheres que transitaram de um sexo para o outro. O termo se refere
tanto a transexuais, como também a travestis: “Elas são homens, no
sentido anatômico-fisiológico, que possuem atributos femininos e
modificam seus corpos conforme essa identificação. Usam maquiagem e
vestimentas femininas, realizam implantes, aplicam hormônios e se
submetem a intervenções cirúrgicas, podendo ou não fazer a cirurgia de
transgenitalização [mudança de sexo], além de utilizarem um nome social
e, às vezes, civil, feminino”, explica a psicóloga.
Por meio dos relatos foi possível concluir que as mulheres trans não têm
acesso aos serviços públicos de saúde de modo integral, e que este
apenas ocorre quando se encontram com doenças em estágios avançados ou
situações de emergência, ou seja, quando não há mais escolha. A
resistência para conseguir o atendimento já começava logo no momento de
chegada aos serviços de saúde: “Na recepção, quando eram solicitados os
documentos do paciente, o nome que constava no RG era de uma pessoa do
gênero masculino. As mulheres trans solicitavam então que fosse incluído
no cadastro o seu nome social, mas a solicitação comumente não era
atendida”, diz a psicóloga. E continua: “Muitas, ao se depararem com
esta situação, brigavam, exigiam seus direitos e, diante da não inclusão
de seu nome social, iam embora sem receber o atendimento.”
Outra questão muito recorrente, segundo Grazielle, é a associação direta
entre as mulheres trans e determinados tratamentos médicos específicos.
Segundo depoimentos, frequentemente os profissionais restringiam a
saúde dessas mulheres a tratamentos hormonais, cirurgia de
transgenitalização e combate a doenças sexualmente transmissíveis, não
levando em consideração sua saúde de modo integral: “Ela não é vista
como um ser humano global, com especificidades sim, mas com aspectos
comuns a todas as pessoas. Pode ocorrer de uma mulher trans chegar com
uma dor de barriga em uma Unidade Básica de Saúde [UBS], e o médico já
achar que seu problema está relacionado ao seu suposto transtorno de
identidade e que deve ser tratada por um psiquiatra. Ele não a examina
para diagnosticar e tratar sua dor de barriga”, exemplifica a psicóloga.
Sinergia social
No primeiro momento de sua pesquisa, Grazielle tentou realizar
entrevistas também com profissionais de saúde nas próprias UBS, mas foi
impedida pela Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, primeiro
sintoma, para ela, da falta de preparo público para lidar com o tema: “O
silêncio gerado pode demonstrar o não desejo, ou pelo menos a
dificuldade de se discutir questões de ordem política e de ações em
saúde para a população estudada”. Com a negativa da Secretaria de Saúde,
a psicóloga fez as entrevistas na sede do Transgrupo Marcela Prado, uma
ONG de Curitiba que realiza ações de ampla assistência para as mulheres
trans.
Grazielle acredita que, para avançarmos politicamente na discussão sobre
a garantia de direitos previstos em lei para todos os cidadãos,
inclusive para as mulheres trans, é necessário contestar o conceito de
“heteronormatividade”: “Precisamos combater as formas de violação de
direitos humanos das mulheres trans, que derivam da ameaça que as mesmas
representam para aqueles que encarnam a defesa das normas e estruturas,
a heterossexualidade como sendo o normal, e o que foge desse padrão
algo aversivo, que deva ser marginalizado. É preciso investir em
direitos positivos, que concebem o respeito à liberdade da diversidade
sexual e da autoexpressão como elementos fundamentais para a pessoa
humana.”
A solução para a questão, entretanto, não é investir unilateralmente
neste ou naquele direito mas, no ponto de vista de Grazielle, na união
da sociedade como um todo: “É preciso que haja uma sinergia de forças
das mais diferentes áreas e setores da sociedade, como educação, saúde,
movimentos sociais, religião, entre outros, para que, além da proteção
legal dos direitos das mulheres trans, haja também uma mudança cultural e
social em direção ao acesso destas à saúde integral.”
Fonte: Agência USP de Notícias
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