segunda-feira, 2 de junho de 2008

O UNIVERSO DOS CINEMÕES.


Inseridos no universo gay desde muito tempo, os chamados cinemões são muito mais do que lugares onde as pessoas fazem sexo, eles são também a casa de alguns e o local de trabalho de outros. Para quem freqüenta as salas, existe uma relação social que vai além do simples ato sexual.
Os cinemas pornôs formam um universo particular escondido pela escuridão das salas de projeção e criminalizado por seu conteúdo ousado.
Quem acha que eles estão restritos ao mundo GLBT engana-se, são também tema de trabalhos acadêmicos que pretendem investigar seu funcionamento sob o ponto de vista sociológico e antropológico.
O mestrando em Semiótica da PUC de São Paulo Givago Oliveira decidiu transformar essa vivência em ciência. Em uma pesquisa que já dura três anos, ele percorreu 26 cinemas de São Paulo para produzir o documentário “T’amo no Saci”, atualmente em fase de pré-produção.
O vídeo vai contar a formação, auge e decadência econômica dessas salas em meados da década de 80 até os dias de hoje, onde elas tomam o papel de locais de transgressão social.
O nome faz alusão a um dos mais famosos cinemões paulistanos, o Saci (em funcionamento há 18 anos), e sugere diferentes interpretações: pode-se ler “tamo (estamos) no Saci” ou “te amo no Saci”.
Confira a entrevista e, literalmente, veja de forma diferente os cinemões.
Como surgiu a idéia de falar sobre um assunto como esse? Quantos cinemas você visitou? Em quanto tempo?
Eu sou um freqüentador das salas. E com o tempo comecei a deixar de ser um mero espectador e perceber que ali tinha uma construção de relações de poder e uma organização social muito interessante, então decidi interpretar todos aqueles signos. A pesquisa já dura três anos. Foram catalogados 26 cinemas, hoje apenas 12 estão em atividade.
Qual o objetivo dele?
É provar duas teses ainda inéditas: que dentro dessas salas nomenclaturas como hétero, homo ou bissexualidade não são mais do que rótulos psicanalíticos para minimizar a psique humana, afinal, a interação que há dentro das salas foge às explicações formais da psicanálise e dos psicologismos. E que o politicamente correto vem criando uma malha fina para que grandes atitudes preconceituosas sejam tomadas de forma velada, criando assim uma difícil contra resposta da comunidade que se encontra na situação preterida.
Quais foram os fatos mais interessantes que você descobriu nesse tour?
São inúmeros acontecimentos. Os cinemas servem de hotel, moradia e, principalmente, como um ambiente de transgressão social e de valores. Eu sempre quis entrevistar um freqüentador obeso (1,79m e 165Kg) de 34 anos que encontrei em diferentes salas, mas ele não deixava com que eu me aproxima-se. Ele se posicionava, sempre agachado ou nas esquinas das fileiras, sentado em poltronas, sempre utilizando o escuro do cinema como escudo. Uma vez consegui, fora das dependências das salas, bater um papo com ele. Enfático, ele me disse: “Onde mais posso fazer sexo? De que outra forma? Olha pra mim, minha aparência é repugnante para a maioria das pessoas. E principalmente para homens gays. No escuro, aqueles héteros nem querem saber que está chupando, em que buraco estão enfiando. Sinto-me útil fazendo isso e também dou uma relaxada. Foi assim que eu aprendi. Num clube noturno não rola. Eu já tentei!”. Existe também a organização de limpeza entre as travestis em uma das salas, rola todo um mapeamento de limpeza de onde elas fazem programa, que são ambientes diferentes dos quais o restante do público pode desenvolver suas relações sexuais.
Depois de todo esse trabalho de apuração, o quê você acha que as pessoas buscam no cinemão?
Cada indivíduo procura as salas por um motivo particular. Garotos de programa e travestis tem ali a fonte de seu sustento. Outros vão para ver o filme e não interagem com a sala. Existem alguns freqüentadores que se denominaram viciados. Existem pessoas que vão por carência, por não conseguirem ter sucesso com os códigos formais dos bares e casas noturnas ou chats de internet. Muitos vão para ter uma relação rápida e pronto, ficam anos sem voltar.
Conheci um senhor de 68 anos que vai ao cinema pra conversar. Algumas vezes ele adentra a platéia e tem alguma relação, mas todos os dias ele vai e fica no hall do cinema conversando com outros homens sobre tudo: política, futebol, religião, comportamento. Ele freqüenta as salas há 10 anos, desde que ficou viúvo.
Qual foi o personagem mais curioso que você encontrou?
Um dos personagens que mais me chama atenção é o Moacyr Oliveira, de 41 anos. Funcionário, ele atua nos serviços gerais de uma das salas. Ele era morador de rua e ia pro cinema dormir quando chovia. Se ofereceu para ajudar os funcionários, pegou amizade e começou a trabalhar lá. Ele mora atrás da tela de cinema, com mais dois funcionários. Eles têm uma vida regrada quanto ao horário (não têm relações sexuais na platéia, só no banheiro) e são super solícitos com o público. Se alguém perde uma carteira ou celular, eles sempre estão prontos para ajudar. Moacyr também é muito moral, não concorda com a atuação dos michês, segundo ele, isso vulgariza o local.
Quais são, ou foram, os melhores/principais cinemões do centro São Paulo?
Primeiro é difícil dizer o que é um cinemão bom. Vamos à explicação do porquê do termo cinemão: ainda na década de 60, a Igreja promovia um discurso contra os filmes politicamente incorretos, que mostrassem nu, adultério ou qualquer atitude contra as normas da sociedade cristã. Então eram enviados padres às salas de cinema, que colocavam a mão em frente da luz de projeção para censurar essas cenas. Daí cine-mão foram chamado os cinemas que exibiam filmes em que os padres colocariam a mão em todo o tempo de projeção. O primeiro cinema de São Paulo a exibir um filme desse gênero foi o cine Tabaris, na Rua Formosa, que ficava perto do Clube da Pelota, atendendo assim a população masculina das mediações. Hoje, os mais freqüentados são: Cine Dom José (público mais velho), Cine Arte Palácio (travestis e interessados), Cine Saci (trabalhadores da classe C se relacionando com homossexuais das classes A e B) e Cine República (gay).
Existe algum tipo de normas nos cinemões? Algum código de boa conduta?
Há uma gama de normas de conduta, uma espécie de cartilha de ética. Na verdade, em qualquer ambiente em que se promova a relação sexual entre os transeuntes é comprovado isso. Seja em saunas, casas de massagem, casas de swing e etc. Um dos exemplos clássicos dos cinemões é que os ativos sempre ficam sentados e os passivos caminham oferecendo sexo oral de poltrona em poltrona.
Por que ir? Qual é a graça? Por que não fazer pegação em algum outro lugar, tipo banheiro, ou caçar na internet?
Em primeiro lugar vem a idéia de implícito. A partir do momento em que você adentra a sala, passando a cortina que divide o hall de entrada para a platéia, existe uma sensação de “transição”, seja pela luminosidade (muito baixa) ou pelo cheiro (uma mistura de cigarro, detergente e esperma). Ao mesmo tempo em que tudo inspira marginalidade e transgressão, as imagens, em sua grande maioria heterossexual, excitam o heterossexual, o deixando vulnerável aos favores sexuais dos homossexuais, gerando assim uma teia de relações sexuais e de poder. Outro fator importante a ser considerado é que essas salas estão localizadas na região central de São Paulo (esse fenômeno é observado em outras grandes cidades como Nova York, Paris e Londres).
É uma região de grande fluxo onde não há a identificação dos clientes das salas. Qual a importância dos cinemões para a cultura gay?
Ainda é difícil classificar. A cultura gay é burguesa, elitista e a partir da década de 90 tornou-se conservadora. As salas não são bem vistas, mas muito freqüentadas. A transgressão existe. Afinal, é um ponto de encontro, gera força de trabalho informal e a relação sexual entre héteros e homossexuais. Mas fora das dependências das salas isso é anulado, colocando assim em xeque alguma importância para a chamada cultura gay, que parte mais para o consumo e uma aceitação popular.

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